quinta-feira, 15 de setembro de 2011

PROFESSOR GOMES, DE LUMIAR: UMA LONGA CARREIRA

Edmeio Gomes

Para alguns ele é o professor Gomes, para outros, seu Gomes, e para muitas crianças, o tio Gomes. Com qualquer destes tratamentos ele é muito conhecido em Lumiar. Diretor aposentado de escola municipal do Rio de Janeiro, Edmeio Gomes tem hoje uma pequena loja de balas em frente ao campo do Lumiar Futebol Clube, onde, à porta, um quadro-negro traz os resultados dos últimos jogos dos grandes clubes cariocas, informação esta já procurada habitualmente por muita gente, até mesmo como pretexto para um pouco de conversa.
Crianças e adolescentes entram e saem durante todo o dia, alguns com mães, pais ou outros familiares, além de professores das duas instituições de ensino público próximas. Com 76 anos, Gomes organiza e ensina teatro na Sociedade Musical Euterpe Lumiarense e comanda os desfiles das escolas em comemoração ao Dia da Independência. 

Professor Gomes orienta a formação dos alunos da Escola Municipal Acyr Spitz para a cerimônia do último 7 de setembro, no centro de Lumiar
MAURÍCIO SIAINES: – Uma das coisas que fazem o senhor conhecido em Lumiar é o desfile de 7 de setembro. Como o senhor começou a coordenar essas atividades?
PROFESSOR GOMES: – Quando saí do Exército, em todas as escolas em que trabalhei, fazia o desfile. Quando cheguei aqui, em maio de 2000, já estava ali na escola, ajudando. E aí perguntei: “Aqui tem desfile?”. Não tinha.

MAURÍCIO SIAINES: – Não havia desfile? Foi o senhor que criou?
PROFESSOR GOMES: – Não, não tinha. E aí, eu disse: “Esse ano vai ter”. Aí, arrumei tudo, botei a garotada para treinar, foram duas semanas treinando e fizemos o desfile. Para o próximo ano, as pessoas das escolas prometeram ajudar a fazer uma coisa maior, junto com a banda da Euterpe Lumiarense. A partir desses desfiles, alguns meninos daqui de Lumiar se interessaram pela carreira militar, dois já foram, tem outro estudando para ser bombeiro, tem outro que quer entrar para a Polícia e outro para a Aeronáutica. Isto é uma coisa que me deixa bem. Não quero dizer que eles estão escolhendo a melhor coisa do mundo, mas é um caminho que eles escolheram influenciados por uma atitude minha, por um trabalho meu. É melhor do que não fazer nada, como um monte que tem por aí.

MAURÍCIO SIAINES: – Conte um pouco de como começou e se desenvolveu essa sua carreira.
PROFESSOR GOMES: – Acho que minha atitude diante da vida vem desde muito cedo, desde muito criança. Eu não tive muitas escolhas e por isto fui indo a sabor das coisas que iam acontecendo. Cheguei  no Rio de Janeiro com 10 anos ...

MAURÍCIO SIAINES: – O senhor era de onde?
PROFESSOR GOMES – De Campos. Meus pais tinham se separado e cheguei no Rio com 10 anos [em 1945], à noite. Saltei na estação Barão de Mauá [da Estrada de Ferro Leopoldina] e fomos morar no Morro do Querosene [entre os bairros do Catumbi e do Estácio, próximo ao centro do Rio], lá em cima, no morro, na casa de um primo. No dia seguinte, acordei às 6h ... quando chego em um lugar novo, gosto de ver o dia amanhecer. Lá do alto do morro, por volta das 7h30, vi um armazém abrindo. Botei a roupa, desci e fui falar com o dono do armazém. Ele me perguntou por que eu queria trabalhar lá. Disse que havia chegado de Campos na véspera, que minha mãe estava separada de meu pai ... contei a história.Aí, o cara chamou os irmão dele, que eram seus sócios. Eram três portugueses ... um deles disse que eu parecia disposto e aí disseram: está bom, menino, você vem trabalhar amanhã. Mas eu disse que não viria no dia seguinte, que iria avisar minha mãe e começaria a trabalhar naquele mesmo dia. Trabalhei nesse armazém durante um ou dois anos.

MAURÍCIO SIAINES: – Eram só o senhor e sua mãe?
PROFESSOR GOMES: – Éramos eu, ela e mais dois irmãos, um mais velho e outro mais novo. Tinha um outro que estava em Macaé, com minha avó. Nós morávamos de favor na casa de um primo, dormíamos no chão. Durante o tempo em que trabalhava no armazém, fazia pequenas entregas no morro e vi uma senhora fazendo um quarto e perguntei-lhe se o quarto seria para alugar, ela confirmou e disse que seria 80 cruzeiros o aluguel. Aluguei, então, o quarto pelos 80 cruzeiros, que era exatamente o valor do meu salário. Mas eu era muito arisco nas entregas, as pessoas até deixavam suas portas abertas para eu colocar as compras em suas casas. Assim, ganhava de gorjeta mais de 80 cruzeiros por mês. Depois, passei do armazém para uma quitanda, que pagava um pouco mais e a vida foi em frente. Mais tarde, fui morar com meu pai, no Leblon. Fui trabalhar em umas lojas por ali. Fui estudar à noite, no Colégio Rio de Janeiro, na Rua Nascimento Silva, em Ipanema.

MAURÍCIO SIAINES:  – E ali o senhor estudou em que nível?
PROFESSOR GOMES: – Fiz o primário e estava fazendo um preparatório para técnico em contabilidade. Trabalhava em uma loja de ferragens no Leblon, a Casa Estrela. E aí, fiz 18 anos e era época de ir para o Exército. Tinha que ter me apresentado em novembro, mas não fui, era final de ano, Natal chegando, com muitas vendas, muitas comissões. Assim, me apresentei no dia 2 de janeiro [de 1954], em Copacabana. Mandaram me apresentar no dia 7 no Regimento Sampaio [na Vila Militar]. Era um contingente em que 90% vinham do norte fluminense e o número de analfabetos era muito grande. E, logo no primeiro dia, escolheram quem queria fazer curso de cabo [entre os que já tinham alguma escolaridade]. Me escolheram, entrei no curso, e fui aprovado no final. Em cinco meses, era cabo do Exército. Depois fui fazer curso para sargento. E eles precisavam de alguém para dar aulas para os soldados analfabetos à noite ... e aí fui dar aulas à noite, das 7h às 9h. No dia seguinte, não fazia muita coisa porque o comandante me deixava ficar corrigindo cadernos e preparando aulas.
Nessa mesma época, havia na Vila o Clube Militar, onde me tornei cantor. Pouco depois aconteceu a morte do Getúlio Vargas e, antes, o quartel entrou em prontidão e a tropa ficou muito agitada. O comandante me chamou e me mandou preparar algumas atividades para acalmar os soldados. Organizei, então, um espetáculo musical, que foi representado umas quatro ou cinco vezes. E aí, morreu o Getúlio, aquela confusão toda, fomos para a rua, no Campo de Santana.

MAURÍCIO SIAINES:   – O senhor está tocando nos bastidores de um grande drama político nacional. Como era essa agitação dos soldados naqueles dias que antecederam a morte do Getúlio?
PROFESSOR GOMES: – Era a inquietude por estarem presos ali dia e noite, não podiam falar com namoradas. Ficavam agitados, às vezes fazendo bagunça, às vezes brigando. Não era nada contra nem a favor politicamente. A maioria estava alienada, nem sabia muito bem o que estava acontecendo. A agitação era por não poder sair e nós acalmamos o pessoal fazendo shows de música, descobrindo talentos em programas de calouros.

MAURÍCIO SIAINES:  – Depois daqueles momentos de crise política, o senhor ainda continuou na Vila Militar?
PROFESSOR GOMES: – Em 1957, fui promovido a sargento e transferido para o Arsenal de Guerra do Rio, no Caju. Era um fábrica de munição do Exército e ali trabalhavam 90% de civis e 10% de militares. E todo militar que ia para lá perdia um pouco do caráter militar, porque ficavam misturados aos civis.

MAURÍCIO SIAINES:   – ... eram trabalhadores, não é?
PROFESSOR GOMES:  – É, eram trabalhadores, nem havia muito a exigência de usar o uniforme. Ali havia um clube, chamado 4 de Novembro, um clube de teatro, com um pessoal da Rádio Nacional. Fiquei ali até 1963. Nessa época estava acontecendo um movimento musical bom, eu estava cantando enquanto no quartel fazia teatro, era ator. No Leblon, onde havia um parque de diversões, na Praça Antero de Quental, cantava junto com Wilson Simonal, Jorge Ben. Cantava também em um programa na Rádio Mauá. E estava empolgado e pedi baixa do Exército para ser cantor. Tinha o exemplo do Martinho da Vila, que tinha feito a mesma coisa. Só que não deu certo. Isso era 1963, eu tinha me casado em 1960 e tinha um filho nascido em 1961.

MAURÍCIO SIAINES:    – E aí, como ficaram as coisas?
PROFESSOR GOMES:  – Fui trabalhar como peão de obra no Jóquei Clube, abrindo pista para cavalo na enxada. Depois fui balconista em uma loja em Copacabana, onde fiquei dois anos. Um dia me encontrei com um amigo que trabalhava na Escola Americana. Havia uma vaga lá, mas era de faxineiro, para lavar banheiros. Comecei na Escola Americana lavando banheiros. Fiquei nesse trabalho durante seis meses, mas era tão caprichoso que o gerente me chamou e me transferiu para limpar salas de aula. Depois me colocou como porteiro.

MAURÍCIO SIAINES:   – Em que ano era isso?
PROFESSOR GOMES: – 1965. E aí me acendeu uma luz: “esse cara gosta de mim e me apoia”. Para cada mudança de função meu salário tinha uma melhora. Como porteiro, era muito gentil na porta da escola e comecei a chamar a atenção da direção. Perguntei se poderia falar inglês com as crianças e concordaram. E aí fiquei ali arriscando o inglês com as crianças.

MAURÍCIO SIAINES:  – Eram conversas em inglês e o senhor estava com 30 anos.
PROFESSOR GOMES: – É. E aí um dia o gerente me chamou e perguntou se eu queria mesmo aprender inglês e me matriculou no Ibeu (Instituto Brasil Estados Unidos), onde fiz um curso básico. Isso já em 1966 para 67. Depois, esse gerente me colocou para lidar com máquinas de cinema, projetores. Foi então que resolvi estudar à noite para fazer o curso de professor. Isso já nos anos 1970. Nessa época consegui uma vaga para meu filho na Escola Americana, com bolsa integral, além de um emprego como faxineira para minha mulher. Em 1976 me formei como professor primário e o diretor da Escola Americana me prometeu a primeira vaga de professor de português que aparecesse e determinou que tirasse de meu trabalho uma hora por dia para acompanhar o trabalho de outros professores e ir observando o modo de trabalhar. Mas havia uma diretora que não queria professor homem trabalhando com crianças.

MAURÍCIO SIAINES:  – O senhor, então, acabou saindo da Escola Americana. Mais tarde, fez concurso público e entrou para o ensino público municipal. E aí?
PROFESSOR GOMES: – Fui para uma escola em Vargem Grande, depois para outra na Barra da Tijuca. Já tinha feito o curso de teatro oferecido no governo Brizola. Ali eu dava aula normal de manhã e, à tarde, dava artes cênicas e pintura. Ficava o dia inteiro, até 1987. Nessa época estavam sendo construídas três escolas nas favelas e me convidaram para ser diretor da Escola Djalma Maranhão, no Vidigal. Assumi a escola em fevereiro de 1988. A prefeitura tinha mandado fazer as matrículas das crianças para aquele ano e matriculei mais ou menos 600 crianças. Depois, mandaram avisar que aquelas escolas não iriam abrir porque não havia móveis, nem professores. No meio daquela situação, chamei a comunidade e disse que poderiam ter certeza que a escola funcionaria. Fui, então, ao Forte Copacabana e pedi ao comandante que me ajudasse e ele me arranjou umas 30 ou 40 carteiras escolares e dois quadros-negros. Depois a prefeitura cedeu e mandou tudo o que faltava. No primeiro dia de aula eu chorava vendo as crianças entrarem. Passei, então a trabalhar 12 horas por dia. Se alguma mãe tivesse deixado de buscar uma criança, ficava esperando até que viessem buscá-la. Foi um trabalho com muita garra, muita vontade e a escola teve um destaque muito grande. Nunca aconteceu uma briga dentro da escola, nenhum problema desse tipo. A escola era muito ativa.

MAURÍCIO SIAINES:  – Como era essa atividade que impedia a ocorrência de problemas?
PROFESSOR GOMES: – Tinha futebol, que eu jogava com eles, vôlei, capoeira. Aos sábados e domingos tinha concurso de lambada. Realizavam-se ali casamentos, cultos, festas de aniversário. Assim, a escola era ativa o tempo todo.

- Maurício Siaines

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